JOSÉ MAYER E A OBRA DE DIAS GOMES: DE O PAGADOR DE PROMESSAS A SARAMANDAIA

Em 1988 JOSÉ MAYER chamou a atenção de público e crítica com sua interpretação do icônico personagem Zé do Burro. Já em 2013, é a Zico Rosado de “Saramandaia” que José Mayer empresta a sua arte

“Se nessas histórias a realidade e o absurdo se entrelaçam, é porque, no Brasil, o fantástico é lugar comum. Já disse que o Brasil é o país que desmoraliza o absurdo, porque o absurdo acontece. E não é possível entender e espelhar a nossa realidade dentro das regras do realismo puro”.

GOMES, Mayra Dias. GOMES, Luana Dias. (orgs). Dias Gomes. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2012.

O baiano Dias Gomes (1922-1999) foi dramaturgo, romancista e autor de telenovelas de sucesso. Dias Gomes foi também membro da Academia Brasileira de Letras, instituição literária fundada no Brasil em 1897 e que tem por principal objetivo a valorização da língua e da literatura brasileiras. É composta por 40 escritores brasileiros e 20 escritores estrangeiros, cuidadosamente eleitos e que permanecem fazendo parte da Academia mesmo após a morte, por isso são também conhecidos como “imortais”. Dá para imaginar então a importância das obras destes imortais da Academia. Dias Gomes é um deles.

Foi ainda em 1935, com apenas 13 anos de idade, que Dias Gomes se mudou com a família de Salvador para a cidade do Rio de Janeiro onde estudou e fez carreira. Dentre suas obras, destacam-se “O pagador de promessas”, “Roque Santeiro”, “O bem amado”, “Saramandaia”, “O santo inquérito”, “Zeca Diabo”, “Carga pesada”, entre outros.

DIAS GOMES: OS PRIMEIROS PASSOS DE UM ESCRITOR

Aos 15 anos de idade, Dias Gomes escreveu sua primeira peça, “A comédia dos moralistas”, com a qual ganhou seus primeiros prêmios. Anos mais tarde encantaria Procópio Ferreira (um dos atores mais importantes da história do teatro brasileiro) com “Amanhã será outro dia”. Mas foi com “Pé de cabra” que Procópio Ferreira e Dias Gomes instituíram sua primeira parceria. A peça foi censurada no dia da estreia, acusada de conter forte conteúdo marxista. Tempos depois, com alguns cortes, a peça foi levada à cena pelo próprio Procópio, alcançando grande sucesso de público e crítica.

Ainda na década de 1940, Dias Gomes assinou um contrato de exclusividade com Procópio Ferreira, tornando-se o escritor do grande ator. Entre outras peças, destacam-se nessa época, “Zeca Diabo”, “Dr. Ninguém”, “Eu acuso o céu”, “João Cambão” e um “Um pobre gênio”.

Depois de romper a parceria com Procópio em razão de divergências políticas, Dias Gomes passou a se dedicar ao rádio, outro espaço em que adquiriu grande importância como autor. Foram mais de 500 peças de teatro, de diversos autores, adaptadas por Dias Gomes para o rádio.

NASCE UMA DE SUAS MAIORES OBRAS: O PAGADOR DE PROMESSAS

Em 1960 Dias Gomes voltou ao teatro com aquele que se tornou talvez o maior sucesso de sua carreira, “O pagador de promessas”, posteriormente adaptada por Anselmo Duarte para o cinema. Vale dizer que Anselmo Duarte é um dos maiores nomes do cinema brasileiro. Com este filme ele conquistou a primeira indicação de uma obra brasileira ao Oscar. Foi também com este filme que Anselmo Duarte levou a sua primeira Palma de Ouro no Festival de Cannes, em 1962. O filme entrou para a história da arte brasileira com a emblemática presença de Leonardo Villar (1923-2020) como Zé do Burro.

O FILME SE TORNA MINISSÉRIE E ZÉ DO BURRO AGORA É INTERPRETADO POR JOSÉ MAYER

O sucesso de “O pagador de promessas” voltou à pauta em 1988, com a produção de uma minissérie de grande sucesso pela Rede Globo de Televisão. No papel de Zé do Burro, José Mayer.

“O pagador de promessas” foi uma minissérie em 8 capítulos, dirigida por Tizuka Yamasaki e exibida no horário das 22:30h. No elenco, além de José Mayer no papel título, outros grandes atores figuravam na história, entre eles, Walmor Chagas, Mario Lago, Nelson Xavier, Joana Foom, Carlos Eduardo Dolabella, Diogo Vilela, Guilherme Fontes e Denise Milfont.

Zé do Burro (José Mayer) é um lavrador de família simples que vive com Rosa (Denise Milfont) e seu fiel companheiro, o burro Nicolau. Em uma noite de chuva intensa, Nicolau sofre um acidente e depois de tentar todo tipo de tratamento para salvar o burro, Zé faz uma promessa para Iansã em um terreiro de candomblé. Depois de ver Nicolau curado do ferimento que quase o matou, Zé do Burro sai em busca de cumprir a promessa ofertada à Iansã.

A correspondente católica à entidade de Iansã é Santa Barbara e por isso Zé do Burro prometeu caminhar de Monte Santo – cidade do sertão baiano que fica a quase 400 km de Salvador – até a Capital, levando consigo uma cruz como a de Jesus Cristo. Ele pretende depositá-la no altar da Igreja de Santa Barbara, localizada no Pelourinho.

O conflito se dá quando, ao lado de Rosa, Zé do Burro chega às escadarias em frente a igreja muito cansado e com o ombro ferido e é impedido pelo padre Olavo (Walmor Chagas) de entrar no templo com sua cruz. Conservador, o padre encara a promessa como uma heresia e fecha a porta da igreja para Zé do Burro. A história que se desenrola a partir disso é o ápice do conflito entre a fé de um personagem do povo e o poder conservador da Igreja.

Para compor Zé do Burro, José Mayer se propôs a uma vivência diferente da habitual. Além de ter passado vários dias em um casebre no sertão cuidando ele próprio do burrinho Nicolau, também se propôs a trocar itens de seu figurino original com um vaqueiro da região. Ele deu seus objetos novos em troca de outros usados – chapéu, facão, canivete e um gibão de couro. Estes elementos podem ser vistos na composição de Mayer, pautada na história dos próprios objetos e que atribuiu extrema veracidade ao personagem Zé do Burro. Esta experiência refletida em sua excelente atuação rendeu a ele o Prêmio APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) de Melhor Ator de Televisão naquele ano.

SARAMANDAIA E O REALISMO FANTÁSTICO LATINOAMERICANO: OUTRO GRANDE ENCONTRO DE JOSÉ MAYER COM A OBRA DE DIAS GOMES

Dias Gomes teve vários textos censurados no teatro e na televisão durante os anos da Ditadura Militar, dentre eles, “O berço do herói” que, depois de adaptado para a televisão, recebeu o nome de “Roque Santeiro”. Esta novela, também censurada na televisão (assim como havia acontecido também no teatro) só voltou à grade de programação da Rede Globo em 1985.

Durante 10 anos (entre 1969 e 1979), Dias Gomes se dedicou exclusivamente à produção de conteúdos dramatúrgicos para a Rede Globo de Televisão. Uma curiosidade sobre este período é de que é dele a primeira novela em cores do Brasil, era “O bem amado”, exibida com enorme sucesso em 1973.

Em 1976 mais um sucesso é levado a público pela Rede Globo, era Saramandaia, obra apoiada na narrativa do realismo fantástico, muito em voga na literatura latino-americana.

A principal característica do realismo fantástico – corrente literária surgida no século XX – é o encontro entre o universo mágico e a realidade apresentando-o como algo cotidiano e corriqueiro. Como já dito, o realismo fantástico esteve muito presente na literatura latino-americana e tem entre seus expoentes, Gabriel Garcia Marquez e Júlio Cortazar, entre outros.

“Saramandaia” foi regravada em 2013 pela própria Rede Globo. Foi a terceira novela a ocupar o horário das 23h da emissora, tendo vindo após dois remakes de grande sucesso, Gabriela em 2012 (que teve sua primeira gravação pela emissora em 1975) e O Astro em 2011 (que teve sua primeira gravação também pela emissora em 1977).

A gravação de 2013 de “Saramandaia” contou com um elenco de grandes estrelas, dentre eles, José Mayer como Zico Rosado, Lilia Cabral como Vitória Vilar, Tarcisio Meira como Tibério Vilar, Vera Holtz como Dona Redonda, Fernanda Montenegro como Cândida Rosado, entre outros. Zico Rosado era um dos personagens centrais na trama. Filho de Candinha (Fernanda Montenegro) e que soltava formigas pelo nariz toda vez que ficava nervoso.

O ENCONTRO COM JANETE CLAIR

Dias Gomes foi casado com a também dramaturga e escritora de telenovelas Janete Clair, entre 1950 e 1983 e com quem teve quatro filhos. Já viúvo, casou-se com a atriz Bernadeth Lyzio em 1984, com quem viveu até sua morte em 1999. Com Bernadeth teve duas filhas, uma delas também escritora, Mayra Dias Gomes.

De Janete Clair, que também se tornou novelista, José Mayer esteve no remake de “Selva de Pedra”, em 1986. Mayer era Caio Vilhena e dividia a cena com Walmor Chagas, Christiane Torloni, Fernanda Torres e Tony Ramos, entre outros.

[Dias Gomes morreu em 1999 em um acidente de carro na avenida Nove de Julho, em São Paulo. Dias Gomes voltava da apresentação da ópera Madame Butterfly, de Puccini, obra dirigida por Carla Camurati].